Nada mais católico que um espanhol católico. País onde são Tiago fez caminho, onde nasceu o fundador da Companhia Jesuítica —aquela que, a ferro e fogo, comungou o Brasil—, onde triunfou o Tribunal da Inquisição, onde a palavra hóstia, o corpo de Cristo, é usada como palavrão, a Espanha tem no catolicismo uma esfinge —letárgica, empoeirada, mas ainda indissociável de sua cultura. Logo, nada mais interessante do que uma Rosalía católica.
Em seu novo disco, a cantora faz da religião seu radical, seja como raiz narrativa ou como fator de choque no pop. “Lux” é uma hagiografia moderna, universalista e globalizada, em 13 línguas. Rosalía conta a história de santas para falar de si entre pós-hyperpop e música clássica. É um disco opulente, tal uma catedral gótica. Seu tamanho impressiona, mas também ilude os mais tementes —a beleza mora nos detalhes.
Única música lançada antes que o disco chegasse ao público, “Berghain” é o livreto que faz o resumo da ópera. A faixa une uma imponente Orquestra Sinfônica de Londres, a voz canhestra de Bjork e Rosalía, em alemão, entre canto popular e lírico. As cordas energéticas lembram o barroco de Vivaldi, a língua remonta à obra total de Wagner, e a artista islandesa traz o simbolismo de uma passagem de bastão.
A força da conexão entre as duas reside mais nos bastidores: no disco, Rosalía trabalhou junto dos produtores Elliott Kozel e Noah Goldstein, parceiros musicais de Bjork. O alemão é uma língua comum a cantores educados em instituições de música formal, como é Rosalía. E a nota mais barroca de “Berghain” está entre “torrão de açúcar” e “intervenção divina”, o contraste entre prosaico e magnânimo.
Mais contemplativo que “Motomami” e menos ousado que “El Mal Querer”, “Lux” leva Rosalía a seu primeiro álbum, “Los Angéles”. O novo disco é também uma vitrine para sua exuberância vocal, que brilha mais nas tessituras suaves e no arroubo da tradição espanhola que na amplitude da intenção operística —cuja força é facilmente captada pelo microfone. É o caso de “Relíquia”, em que canta com vibratos doces, ou “Divinize”, cuja articulação do sussurrar mostra uma artista em completo domínio de suas técnicas.
Em “Jeanne”, outra exibição de sutileza da voz, aqui soando como musseline francês. Já em “Mio Cristo Piange Diamante”, em italiano, uma larga amplitude com razão. Potente como uma ária de Puccini, é nesta faixa em que fica deflagrado o conflito formador do disco de Rosalía. Sua dor é amar a si, ao homem, ao inexplicável como é o Cristo que chora diamantes. Em “Novia Robot”, canção de mais rápida digestão do disco, ela brinca: “Vou ficar bonita para Deus”. Não seria o homem o criador da máquina?
Fazendo excelente uso do caminho narrativo que o disco lhe oferece, Rosalía dá apenas pistas dessa história na primeira faixa. “Sexo, Violencia y Llantas” abre com o motivo da heroína. A melodia se repete ou se desdobra em outros momentos do álbum, como no single cantado em alemão ou em “La Rumba del Perdón”. A rumba catalã, algo conhecida no mundo na voz dos Gipsy Kings, ganha uma amostra original nesta faixa repleta de alma e floreios.
Quando joga em casa, aliás, Rosalía é como o Barcelona nos áureos tempos de Ronaldinho —ganha e encanta. Ela brilha no encontro da sua própria música clássica e da eletrônica, mais como recurso de manipulação sonora do que mera colagem de batidas. Em “De Madrugá”, usa as palmas das bulerías, coro e apenas uma seção vocal para criar um dramático flamenco pós-moderno. Não por acaso a artista trabalhou com El Guincho nesta faixa e na rumba.
Em “Mundo Nuevo”, outra façanha. Une canto de ares árabes a uma orquestra europeia numa original sevilhana. Ela esculpe o silêncio entre o maximalismo da música, e repete a operação em “Dios Es un Stalker”. Caminha entre a rítmica do reggaeton e uma harmonia depurada de salsa que, pouco a pouco, vai encorpando. Seguram a voz o baixo e o piano, em cadência andaluza —a maior contribuição espanhola ao idioma salseiro. É a escada da cantora, que sobe os lances —as oitavas— até chegar a um contagiante clímax.
Mas, mesmo com um orçamento tão forte quanto seu histórico, Rosalía não consegue abraçar tudo o que quer em “Lux”. Em “La Perla”, a cantora é apoiada pelo grupo Yahritza y su Esencia, mas transforma o rico regional mexicano em uma valsa de princesa da Disney. “Sauvignon Blanc” parece uma rebarba, uma canção muito típica para um projeto tão pretensioso. Cantar em árabe, a própria disse em entrevista, foi uma missão inconclusa —Shakira, de ascendência libanesa, já havia feito.
Nos Estados Unidos, a imprensa fabrica uma quase exegese, a interpretação de textos sacros, acerca do álbum. Espantam-se com as tantas línguas do disco e a música dita clássica. O fato mostra menos a capacidade da artista treinada do que a aridez intelectual de parte da crítica que, após décadas de completo controle da indústria, se vê confrontada a fenômenos como Rosalía e Bad Bunny. Estes dois mostram ao preguiçoso ensimesmado —há mais formas de fazer música do que seu país deixa ver.
Errar no árabe não é um problema. Uma grande artista também se faz de humanidade. De Deus já basta a figura que nutre o novo disco de Rosalía. O catolicismo, não é de hoje, alimenta a arte. Madonna foi a mais emblemática no pop e durante séculos a civilização ocidental fez da música adoração.
Em seu novo álbum, a cantora espanhola se sustenta entre sagrado e profano enquanto flerta com símbolos cristãos num mundo de conservadorismo e inteligência artificial. Louvar o disco pela sua opulência é carola demais. Radical é reconhecer nele a audácia de fazer o belo com o justo, amém.