Fazer R&B com jeito, som e cara de Brasil. É o que Ludmilla se propôs ao escolher como cerne para seu novo disco o “rhythm and blues”, um gênero americano de pouquíssima adesão aqui. É arriscado porque com o “Fragmentos”, lançado agora, ela interrompe o sucesso do “Numanice”, sua coleção de discos de pagode que se materializou em uma das turnês mais disputadas do país.
“Se eu quisesse ficar acomodada, continuava no pagode. Não há festival de música R&B no Brasil, nem playlists dedicadas ao ritmo nas plataformas de streaming, ou espaço nas rádios. Mas o artista tem que confiar no sentimento dele. Em algum lugar do mundo alguém vai se conectar com aquilo”, diz Ludmilla, por videochamada, mas de câmera desligada, na tarde desta quarta-feira.
Cansada, tinha acabado de chegar de Nova York, onde estava para curtir a festa de Halloween superbadalada da modelo Heidi Klum. E foi assim, entre o Brasil e os Estados Unidos, que nasceu o “Fragmentos”. “Produzi o disco lá fora, aqui, na sala de casa, na garagem, nos estúdios”, ela diz.
O processo levou dois anos, tempo que Ludmilla usou para fazer dinheiro com o “Numanice”, seu festival de pagode que nasceu tímido, há quatro anos, como um EP de cinco músicas. Prontamente abraçada pelos fãs, a obra foi expandida em um disco, que ganhou uma continuação, e depois outra.
A trilogia de álbuns deu forma à turnê que roda o país desde 2021, já vista por 650 mil pessoas, com faturamento de cerca de R$ 185 milhões, um marco para a indústria de shows do país. Virou referência até para Ivete Sangalo, que, de olho no sucesso da colega, acaba de lançar sua própria turnê com covers de pagode.
Com grana no bolso, Ludmilla pôde gastar à vontade para fazer o novo disco —muitos milhões, ela diz, sem especificar quanto. O problema foi a falta de apoio. Não se ouve R&B no Brasil, gente do mercado a alertava.
De fato, o gênero nunca se consolidou aqui. Criado nos Estados Unidos nos anos 1940, o R&B surgiu como rótulo da música feita por comunidades afro-americanas, um misto de blues e gospel. O gênero, de ritmos cadenciados, sensuais, e vocais melódicos, versava à época, e ainda hoje, sobre amor, desejo e identidade.
Nas décadas seguintes o R&B passou por uma evolução —que veio a ser chamada de soul— nas vozes de artistas como Aretha Franklin e Stevie Wonder. Eles serviram de referência a Tim Maia, por exemplo, que até flertava com o R&B, mas sem largar mão da brasilidade. Nos últimos anos, poucos artistas se arriscaram no gênero, embora o som esteja presente no repertório de nomes como Tássia Reis, Luedji Luna e Liniker. Nunca, porém, teve o êxito comercial do funk e do sertanejo, por exemplo.
Mas Ludmilla quis dar a cara a tapa mesmo assim —”achei que era hora de me agradar como artista”, ela diz—, e nem foi tão difícil. Ela já tinha faixas de R&B no currículo, tanto antigas, como “Não Quero Mais”, de dez anos atrás, como recentes, caso de “Sintomas de Prazer”, do álbum “Vilã”, que lançou há dois anos.
Ludmilla escuta R&B desde adolescente, e fez um intensivão para estudar as peculiaridades atuais do gênero. Entre as referências estão Rihanna, Summer Walker, SZA e Justin Bieber, que lançou dois álbuns do gênero este ano.
Em termos de composição e melodia, já estava treinada —suas canções de pagode, ela diz, sempre nascem como faixas de R&B para só depois ter as batidas de percussão adicionadas na pós-produção. Assim, o novo álbum é a materialização daquilo que Ludmilla sempre fez, mas não tinha coragem de lançar.
O “Fragmentos” tem a ver também com um desejo de levar sua música para fora. Com shows internacionais de importância na agenda, como o que fez no festival Coachella em abril do ano passado, Ludmilla agora mira o mercado americano —embora não esteja lançando músicas inteiras em inglês, como fizeram recentemente Anitta e Pabllo Vittar, que também querem tocar nos Estados Unidos.
Ludmilla nunca sentiu segurança com a língua inglesa, ela diz, mas arrisca uma frase ou outra no disco novo, como na faixa “Calling Me”, que canta com Luísa Sonza, e em “Energy”, que pede energia, e tudo de melhor, em inglês, antes de cantar o resto em português mesmo.
Ela escalou um time de cantores do R&B e do rap americano, como Latto, Muni Long —esta, aliás, canta em português na faixa “Tudo Igual”—, e Victoria Monet, dona de um som elegante reconhecido pelo Grammy no ano passado, que entregou a ela os prêmios de artista revelação e de melhor álbum R&B, por “Jaguar II”.
“Os artistas americanos estão na bolha deles. Para furar, é difícil. Mas se eles gostarem do som, vão entrar na sua. Depende de quem se está tentando alcançar. Se estamos falando de gravar com a Beyoncé, aí é difícil.”
Mas não impossível. Embora nunca tenha dividido microfone com sua diva —Ludmilla começou sua carreira com a alcunha de MC Beyoncé, em 2012—, ela já conseguiu, ao menos, uma gravação de áudio da popstar para introduzir seu show no Coachella. Na ocasião, antes de Ludmilla subir ao palco, a voz de Beyoncé ecoou pelo campo do evento: “diretamente do Rio de Janeiro para a Califórnia”.
As duas se conheceram em Salvador, há dois anos, quando Beyoncé viajou à cidade para divulgar o filme do seu álbum “Renaissance”. Ali, Ludmilla tirou foto com a ídola, e fez contatos com gente da sua equipe. Diz ainda que, ao topar com Beyoncé em um evento em Paris, contou a ela que seria mãe junto de Brunna Gonçalves, sua mulher. A americana, segundo Ludmilla, abençoou a vinda de Zuri, nascida em maio nos Estados Unidos.
Ser mãe, afirma Ludmilla, é um dos tais fragmentos que compõem o título e a persona do novo álbum. A faceta aparece em “Paraíso”, música dedicada à família. “Foi Deus quem abençoou/ pra gente multiplicar o amor”, ela canta.
É um pop romântico, distante do funk proibidão que fez em “Bota”, ou da sofrência de “Whiskey com Água de Choro”, um R&B bem tradicional, sobre as idas e vindas do amor.
Essa mistura de sons, temas e personas sempre foi e ainda é fundamento da carreira de Ludmilla, que surgiu nos bailes funk do Rio de Janeiro, decepou o MC do nome para virar uma diva pop, e aí criou suas próprias gigantescas rodas de pagode. Seus shows, aliás, são amostra dessa diversidade. “Canto para senhoras e crianças, lésbicas e héteros, ricos e pobres, todo mundo. Música é isso, cara. Música é sentimento.”