A artista Beatriz González ficou incomodada ao ler uma reportagem a seu respeito em um jornal da Colômbia. Não que o texto tivesse um tom negativo. Longe disso. A publicação tratava a pintora como uma mulher fina e elegante, adjetivos que a deixaram inquieta. A colombiana, afinal, não queria virar uma representante da alta cultura de seu país
Como num ato de rebeldia, decidiu então se apropriar de tudo aquilo que a elite intelectual abominava. Passou a abusar das cores berrantes em pinturas sempre pródigas em elementos visuais. Não satisfeita, questionou a sacralidade do fazer artístico, transformando em tela objetos tão comezinhos quanto camas, cortinas e penteadeiras. Para González, a cultura popular não era motivo de piada, mas o alicerce de seu projeto estético.
Quem for à Pinacoteca de São Paulo terá agora a oportunidade de ver a produção dessa artista que se tornou um dos maiores nomes da arte latino-americana ao desafiar as fronteiras entre alta e baixa cultura.
Primeira exposição no Brasil dedicada à González, de 92 anos, a mostra leva ao público mais de cem trabalhos produzidos em seis décadas de carreira. Nesse período, ela se notabilizou por promover uma fricção entre o erudito e o popular.
Isso pode ser visto em uma obra que traz a Mona Lisa, de Leonardo da Vinci, pintada no espelho de uma estante. Ou ainda em um trabalho no qual a artista reproduziu sobre a lona de um tambor a pintura “O Tocador de Pífaro”, de Édouard Manet.
Embora as pinturas e os suportes sejam diferentes, as obras têm em comum a saturação cromática, como se fossem impressões malfeitas.
“Ela está discutindo o modo como o sul global aprende sobre história da arte”, diz Pollyana Quintella, que assina a curadoria da exposição ao lado de Natalia Gutiérrez. “Com exceção de quem tem dinheiro para viajar, esse é um aprendizado que se dá por meio de livros e reproduções que destoam das cores originais da obra. Ela faz uma cópia de versões já desgastadas.”
Ao abusar das cores e pintar suas obras em móveis, a artista também se associava à estética kitsch —termo usado para designar a arte considerada vulgar e cafona. “Ela esteve sempre muito disposta a contestar essas divisões entre bom gosto e mau gosto, alta cultura e baixa cultura.”
A artista também contestava a aura de sacralidade que paira sobre as obras de arte. Foi isso o que ela fez em 1977, quando exibiu uma cortina de dez metros pintada com a tela “Dança em Le Moulin de la Galette”, de Pierre-Auguste Renoir. Durante a abertura da mostra, ela pegou uma tesoura e começou a retalhar a própria obra. O objetivo era vender os fragmentos ao público ali presente.
Ao fazer isso, González desafiou a inviolabilidade do objeto artístico e desvelou as engrenagens financeiras que movem o mundo das artes.
A atitude iconoclasta lembra o que Nelson Leirner fez em 1967, quando organizou uma exposição para se desfazer das próprias obras. Durante a mostra, permitiu que os visitantes levassem os itens para casa sem pagar nada. Em oito minutos, a galeria foi depredada e os quadros arrancados da parede.
O artista fez parte da chamada nova figuração brasileira, uma espécie de arte pop nacional. Durante os anos 1960, esse movimento incorporou imagens dos veículos de comunicação às obras de arte, algo que a própria González costumava fazer na Colômbia.
Em 1965, a artista se inspirou em uma notícia veiculada na imprensa para conceber um de seus trabalhos mais célebres. À época, o jornal El Tiempo estampou em suas páginas a imagem de um casal que havia se suicidado na cidade de Chocontá. A foto chamou a atenção da artista, motivo pelo qual decidiu reproduzi-la na tela “Os Suicidas do Sisga”, um dos destaques da exposição.
“O diálogo entre ela e a nova figuração brasileira é muito fértil para gente pensar como certas linguagens internacionais foram traduzidas na América Latina”, diz Quintella. “Há pontos de contato muito interessantes entre Beatriz e alguns dos nossos artistas.”
Talvez o diálogo mais forte seja mesmo com Nelson Leirner. A exemplo do brasileiro, González tinha uma poética corrosiva e um humor sardônico. Era capaz de tecer críticas afiadas por meio de imagens aparentemente banais. É o caso de “África Adeus”, pintura que retrata uma rainha Elizabeth de cores vibrantes e contornos distorcidos.
Para a curadora, González reflete sobre o fascínio que monarquias exercem na América Latina a despeito de nosso passado colonial. “Essas representações geram curiosidade, mas no fundo revelam uma história de pavor. Somos países colonizados, em que a história de reis e rainhas evoca sangue e violência.”
A artista também tecia críticas mordazes à classe política da Colômbia. Isso se faz sentir em “Decoração de Interiores”, um de seus trabalhos mais famosos. Em uma cortina de 70 metros, ela reproduziu a foto do então presidente Julio César Turbay Ayala se refestelando em uma festa em sua homenagem. Enquanto os convidados bebiam champanhe e gargalhavam, a Colômbia estava mergulhada em uma grave crise social.
É como se González usasse essa obra para escancarar a indiferença das autoridades com os rumos do país.
A artista não retratou apenas figuras de poder, mas também populações desassistidas. Na década de 1990, dedicou uma série de trabalhos a mulheres que perderam seus filhos para a violência armada na Colômbia. Uma das obras mais emblemáticas desse projeto é “Lágrimas e Peixes”. Inspirada em fotos de jornais, a pintura mostra uma mulher com as mãos tampando os olhos.
“Ela está vivendo uma experiência de perda simbólica e subjetiva tão radicais que ver é um ato extremamente agressivo”, diz Quintella. “Para essas mulheres, tornar visível é aquilo que há de mais violento.”
De acordo com a curadora, obras como essa fazem de González um nome importante para entender o mundo contemporâneo. “É interessante resgatar a produção dela em um momento no qual estamos discutindo a quantidade de imagens que consumimos e essa espetacularização da violência nas redes sociais. É um trabalho que vai se atualizando e que parece ter ainda mais sentido hoje em dia.”