Um humanoide digital sem genitais e de pele acinzentada. Esse é o personagem bizarro que o artista taiwanês Li Yi-fan, 36, criou para ironizar a sociedade do século 21, cada vez mais moldada pelas redes sociais e, agora, pela inteligência artificial. Em seus vídeos, feitos do zero com softwares de código aberto, ele controla sua criatura como uma marionete, que parece encarcerada em uma realidade digital distópica.
Yi-fan foi escolhido para representar Taiwan na próxima Bienal de Veneza, mais importante mostra de arte contemporânea do mundo, com curadoria do carioca Raphael Fonseca, que expôs seu trabalho na última Bienal do Mercosul. Na Itália, as obras inquietantes ficarão no Palazzo delle Prigioni, na praça San Marco, longe dos jardins que abrigam os pavilhões dos países na Bienal —e do principal circuito do evento.
Isso acontece porque Taiwan não é reconhecido oficialmente como um Estado independente pela Organização das Nações Unidas, já que a China reivindica a ilha como seu território e ameaça cortar relações diplomáticas com nações que a reconheçam como soberana.
A situação complexa data de 1949, mas ganhou novos contornos neste ano. No mês passado, o presidente chinês Xi Jinping declarou o dia 25 de outubro como feriado para comemorar a data em que as tropas japonesas devolveram Taiwan à China após o fim da Segunda Guerra. O movimento foi interpretado como uma forma de reforçar o desejo do país de incorporar a ilha ao seu território.
“Taiwan tem uma posição única no mundo. Estamos na fronteira do ecossistema mundial”, diz Yi-fan. A reflexão constante sobre a própria identidade, para ele, é um sentimento comum a muitos taiwaneses —e, no seu caso, se agrava pela rapidez com que a tecnologia se desenvolveu nas últimas décadas, borrando os limites entre o real e o imaginário, o verdadeiro e o falso.
Taiwan é um dos principais produtores de semicondutores, itens indispensáveis para a construção de computadores, por exemplo. “Mas não criamos conteúdo, não temos ferramentas de inteligência artificial. É sempre uma sensação dúbia se somos importantes ou não. Envolve uma crise existencial sobre quem somos, e como nos representamos”, diz.
O tom universal de seu trabalho é ainda uma tentativa de se encaixar no mundo. Afinal, é difícil encontrar alguém que não seja impactado pelo avanço frenético das tecnologias digitais hoje em dia. Para Raphael Fonseca, o curador, o acesso mais barato à internet e às tecnologias na Ásia tem inspirado uma nova geração de artistas da região. Essa leva de criadores explora ferramentas digitais para fazer arte, como a chinesa Cao Fei, que fez uma retrospectiva na Pinacoteca de São Paulo em 2023.
A tendência pode parecer contrária a outra vertente, adotada por muitos artistas em ascensão na América Latina e, em especial, no Brasil, para criticar um mundo dominado pelas big techs, as megaempresas multinacionais de tecnologia. Por aqui, há um retorno à ancestralidade e a materiais que evocam a natureza, como madeira, tecidos e metais.
Mas são justamente as telas que aproximam o trabalho do taiwanês do Brasil. Segundo um levantamento de 2023 da Comscore, o país é o terceiro maior consumidor de redes sociais, atrás da Índia e da Indonésia. E, ao mesmo tempo, é o quarto país que mais teme o avanço da inteligência artificial, segundo um levantamento global do Pew Research Center.
“O trabalho de Yi-Fan tem uma ansiedade em relação ao mundo, e aponta para problemas que nos unem. Essa ideia de construir uma vida para um mundo que nos observa o tempo inteiro é uma realidade na Ásia e na América Latina”, diz Fonseca. É uma angústia palpável especialmente para os millennials, geração de Yi-Fan, que viu a internet chegar às casas por meio de bipes demorados da linha telefônica até invadi-las completamente em telinhas que não nos deixam mais sozinhos.