Annabella recebe, um dia, aquele telefonema que os filhos tanto temem. Do outro lado da linha, uma voz tenta lhe dizer que seu pai morreu. A notícia é interrompida pelos sons ao seu redor, entrecortando as palavras.
Sua dor é acompanhada de um problema que não pode adiar para viver seu luto. Ela está na França e seu pai morreu em um canteiro de obra nos Camarões, no oeste africano. Seus esforços para trazê-lo de volta à casa dão nome ao romance da escritora francesa Ève Guerra, “Repatriação”.
O livro venceu, no ano passado, o prêmio Goncourt na categoria de romance de estreia —um baita endosso, no mercado francófono. É publicado agora no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Diogo Cardoso.
Como tantos outros franceses vêm fazendo, Guerra explora o gênero da autoficção neste livro, inspirado na própria vida. Ela e a protagonista Annabella nasceram no Congo, mudaram-se para os Camarões e, por fim, se instalaram na França, onde estudaram literatura.
Guerra explora esse estado de entre-coisas, essa identidade que cruza mais de uma fronteira e habita mais de um continente, enquanto descreve o martírio de repatriar o corpo de um pai. Com o cadáver, embarcam as questões de conflito de classe, colonialismo, gênero e raça.
O pai de Annabella era um homem franco-italiano que trabalhava no setor da construção na África. Sua mãe era uma aldeã congolesa. Nasce, portanto, já em um sistema entre privilégio e opressão. A nacionalidade francesa permite que, mais tarde, ela troque o interior da África pela França.
“Tento mostrar que a intimidade pode ser o lugar onde a dominação econômica e as clivagens norte-sul são reproduzidas”, afirma Guerra. É essa a dinâmica entre o pai e a mãe de Annabella, que têm uma relação mais de vassalagem do que de parceria.
Guerra, porém, evita recair em críticas superficiais. Sugere que o personagem do pai também é uma figura escanteada. É um trabalhador de baixa renda que trabalha em terrenos de construção às margens das florestas, no interior do continente.
“Ainda que seja branco e europeu, o pai de Annabella é um homem pobre. E é porque ele é pobre que habita esse exílio perpétuo e está condenado a esse modo de exploração”, diz a autora.
Não é fácil transformar tais figuras em personagens literários, afirma Guerra. São, afinal, espécies de anti-heróis. “São seres pouco afáveis e, às vezes, medíocres nas suas aspirações, mas que, no entanto, dizem algo sobre o estado do mundo e as disparidades sociais que atravessam.”
Mais do que pelo conteúdo, o livro impressiona pela forma. Guerra se esbalda em construções poéticas e em imagens inesperadas, como “a água da piscina secando ao sol” e “vovó desaparecia do mesmo jeito que as cores das paredes e a casa”. Está evidente no texto seu carinho pelas ferramentas da narração.
É notável, em especial, como Guerra intercala diálogo, ação e descrição em um só fôlego. A cena de abertura, por exemplo, desenrola-se da seguinte forma: “O barulho de sirene / – seu pai morreu / até as profundezas de meus ossos / – e não vamos conseguir / o barulho da sirene / – o corpo! Talvez não vamos conseguir repatriar o corpo do seu pai”.
A técnica surpreende, a princípio, e confunde de leve. Mas, repetida ao longo do livro, acaba naturalizada e consegue transmitir mesmo algo além do conteúdo, trazendo o leitor para dentro da ferida de Annabella.
“Não escrevo frases no sentido estrito da palavra, mas períodos sintáticos, unidades de respiração que, por sua vez, correspondem a segmentos musicais”, afirma. “Eu me permito a possibilidade de cortar esses segmentos ou interrompê-los com diálogo porque as palavras e frases são, para mim, mais sobre os sons do que sobre os significados.”
Guerra rompe dessa maneira com algumas convenções do gênero literário, às quais se refere como “espartilhos”. “O parágrafo e a frase canônica são vestimentas que podem ser descartadas”, diz.