Escritor premiado, Daniel Munduruku não é muito de oferecer palavras de conforto. “Se posso fazer uma leitura do que vem pela frente, eu diria que os indígenas estão caminhando para o abismo do desaparecimento.”
É só uma das análises pesarosas que ele faz ao longo dos 40 minutos de conversa com o repórter sobre seu novo livro, carregado do pior tipo de pessimismo —o que se baseia em fatos concretos.
Se, como o autor lembra, o Brasil oferece aos indígenas o reconhecimento de suas culturas e o direito à diferença, tendo a Constituição de 1988 como um marco fundamental, isso está longe de garantir sua manutenção perene.
“O que o estado democrático faz é reconhecer que existe a diferença, mas se você não oferece condições para que a diferença exista, a tendência é que ela continue nas periferias, nos guetos”, afirma o escritor celebrado de 61 anos e dezenas de livros, que também é vereador em Lorena, no interior paulista, eleito pelo PDT.
“Se o Estado não demarcar terras, aos pouquinhos a integração à cultura brasileira vai acontecer de maneira violenta, como sempre aconteceu, e fazer desaparecer muitas culturas”, diz o autor. “Vão continuar no povo brasileiro, mas não terão mais voz autônoma, que exista por si mesma.”
É o mesmo tom implacável que domina seu novo livro, “Fantasmas”, uma guinada à literatura voltada ao público adulto por parte de um escritor que já ganhou três Jabutis por seu trabalho infantojuvenil.
O último desses prêmios foi recebido na semana passada, pelo livro infantil que realizou com a ilustradora Marilda Castanha para a editora Moderna, “Estações”. O romance que sai agora é sua estreia na Record, um dos maiores grupos editoriais do país, e traz um enredo muito pautado pelo assombro de desaparecer.
Na história, um homem indígena sobre quem se sabe pouco é detido após cometer um crime que só fica claro conforme a narrativa se desenrola. O que se sabe desde o começo, no depoimento que ele dá a seu advogado, é que sua comunidade foi toda dizimada num massacre que vitimou seus pais e sua mulher grávida.
Os fantasmas do título têm muitos significados —é a maneira como o protagonista se refere aos brancos com quem tem o primeiro contato pouco antes do morticínio de seu povo, mas também se refere aos mortos de quem sente uma saudade tão desoladora que o leva a querer, ele mesmo, sumir. O homem, que depois descobrimos se chamar Peixe, tem um tanto de alma penada.
Munduruku afirma que os indígenas possuem uma espécie algo cínica de “dupla nacionalidade” no Brasil, um traço bem descrito em um trecho de “Fantasmas”.
“O Estado o mantinha preso por uma simples confissão, na qual admitia um crime que o tornava uma pessoa perigosa para viver em sociedade. Mas qual sociedade? A sua, de origem, já não existia fazia tempo”, diz o livro. “Por outro lado, a sociedade nacional também era sua, mas não o considerava assim, justamente por ele pertencer a um outro povo.”
O modo como o país vê os indígenas sempre se dividiu em uma faca de dois gumes, entre o que Munduruku chama de “uma visão ideologizada e uma romantizada”.
“O romântico é: o índio é legalzinho, vive lá na floresta, tem uma espiritualidade super avançada e tal. E o ideologizado é que o índio é preguiçoso, o índio tem muita terra, o índio não sabe o que fazer com ela, o índio é selvagem e precisa ser ou integrado à sociedade e virar trabalhador, que é o cinismo da colonização, ou afastado sem nenhum direito.”
O fundamento disso não mudou, mesmo que nos últimos tempos haja uma projeção maior de escritores, políticos e colunistas que são indígenas, o que Munduruku vê como um sinal mirrado de esperança. “A gente serve muito mais enquanto formação de identidade ao Brasil que para manutenção das nossas culturas.”
“Eu sempre falei que escrevo para público não indígena. Porque o meu público indígena me lê também, mas já conhece basicamente o que eu escrevo. Eu escrevo para as crianças da sociedade branca, dando uma ferramenta para serem humanas melhores, para que possam viver a sua experiência de humanidade de uma maneira mais mais plena, conhecendo a diversidade.”
Só que isso não significa que ninguém vai se tornar ativista pela causa indígena. Pelo contrário, diz o escritor, já que o conhecimento adquirido pela literatura pode ser instrumento para afiar melhor as armas da colonização.
O discurso verde que se enxerga por todo canto nesse mês de COP30 em Belém é um exemplo do jogo de espelhos que não comove o autor. Afirma de bate-pronto não ter “expectativa nenhuma” para o evento.
“Eu já conheço bem essas essas dinâmicas de outros carnavais”, afirma o escritor, que já bateu ponto com frequência em eventos de alcance global na linha de frente da defesa do patrimônio cultural dos povos originários.
Os dias de COP são protocolares, quase ritualísticos, nas suas palavras. As discussões relevantes de verdade acontecem antes, entre representantes das delegações que amarram o que vai ser assinado. É óbvio, diz ele, que vai render “uma coisinha ou outra, uma palavra nova vai surgir, como surgiu sustentabilidade, economia verde, economia circular”.
“Mas já é a COP30. Houve 29 antes, e todas elas seguindo a mesma lógica que acabou por nos trazer aonde estamos hoje. O mundo continua à beira do caos.”
O evento acontecer em Belém, região onde ele nasceu, até faz sentido por ser a única cidade amazônica com porte para organizar algo assim. “Mas é pior para a floresta e melhor para o governo do estado. E é pior também para os povos tradicionais que o habitam e que precisam da floresta em pé.”