A autora mineira Ana Maria Gonçalves, 54, tomou posse nesta sexta-feira em sua cadeira na Academia Brasileira de Letras. A escritora, autora de “Um Defeito de Cor”, é a primeira mulher negra em 128 anos de ABL.
A eleição foi em julho, com 30 votos para Gonçalves contra um para a escritora indígena Eliane Potiguara. Havia outros 11 concorrentes.
A escritora abriu o discurso pedindo bênção à mãe. A fala cerimonial acenou para intelectuais negras. A escritora usou expressões cunhadas por Lélia Gonzalez, Leda Maria Martins e Conceição Evaristo.
“Venho falando pretuguês, escrevendo a partir de noções de oralitura e escrevivência”, afirmou.
Ela citou nominalmente Conceição Evaristo, autora cuja tentativa de candidatura a uma cadeira na ABL gerou debates sobre a pouca presença de pessoas negras. Conceição, que estava na plateia, foi aplaudida de pé.
“Quero fazer avançar na Academia as coisas que nela sempre critiquei, como a falta de diversidade.”
Sua cadeira é a 33, antes do gramático e linguista pernambucano Evanildo Bechara, morto em maio.
“Um Defeito de Cor”, publicado pela Record em 2006, abriu novos flancos na literatura brasileira para discutir a diáspora africana. Tema de exposição, a história narrada pela protagonista Kehinde virou enredo na Marquês de Sapucaí, com o desfile da Portela. Logo depois do desfile as vendas do livro dispararam na Amazon, plataforma online de vendas.
O vestido usado por Ana Maria Gonçalves, inspirado no verde fardão da ABL, foi produzido por costureiras do barracão da Portela. João Vitor Lacombe, Carolina Bomfim, Raayane Costa e Anthony Albuquerque, sob coordenação do carnavalesco André Rodrigues, produziram a peça.
“A Portela deu uma visibilidade ao livro que nenhuma outra festa ou evento literário deu. Tirou, realmente, o livro da bolha, e atingiu gente que só a literatura não atingiria”, disse Gonçalves.
A escritora cumpriu os ritos: tomou a sopa com os imortais, fez a fotografia oficial, preparou discurso e foi conduzida ao salão nobre pelas imortais Rosiska Darcy de Oliveira, Fernanda Montenegro e Miriam Leitão. Eram seis as imortais mulheres na cerimônia. A plateia era de maioria negra.
Após o lançamento de “Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim”, em 2002, Ana Maria Gonçalves se dedicou a escrever “Um Defeito de Cor” durante cinco anos, dois deles foram de pesquisa, outro de escrita e outros dois ed reescrita.
O resultado das 952 páginas é uma história que contempla a vida de Kehinde como símbolo de milhões de vítimas sequestradas na África e escravizadas no Brasil. Kehinde vive em busca do filho perdido, Omotunde. A trama é inspirada em Luiza Mahin e o filho Luiz Gama.
“Nossos arquivos são muito masculinos, muito brancos, muito ocidentais. A literatura faz as vezes da memória e da história, e a Ana conta muitas histórias no seu livro”, afirmou a historiadora Lilia Schwarcz nesta sexta.
“Estamos vivendo o luto dos complexos do Alemão e da Penha e a gente pode considerar que Kehinde talvez seja uma dessas mulheres negras que perdeu um filho. A Folha mostrou que a maior parte dos mortos tinha apenas a descendência feminina [não tinham registro paterno na identidade]. Essas mães perdem os filhos, procuram seus filhos, mas não perdem a esperança.”
Mais de 200 mil exemplares de “Um Defeito de Cor” foram vendidos até hoje. Após publicação do livro em 2006, a Ana Maria Gonçalves diz ter travado no processo de escrita durante sete anos. A autora mineira focou no teatro e na publicação de contos nos Estados Unidos e Europa. Pretende publicar uma nova leva de obras em breve.
Em votação da Folha com 101 especialistas convidados, “Um Defeito de Cor” foi escolhido como o melhor livro de literatura brasileira do século 21.
Antes de Ana Maria Gonçalves, ocuparam a cadeira 33 Domício da Gama, que morreu aos 63 anos, Fernando Magalhães, morto aos 66, Luís Edmundo, aos 83, Afrânio Coutinho, aos 89, e Evanildo Bechara, aos 97 anos.
“Como podemos ver, há uma progressão. Rumo à verdadeira imortalidade”, brincou Gonçalves.