Em livro, Sophie Calle torna cotidiano banal em inusitado - 07/11/2025 - Ilustrada

Em livro, Sophie Calle torna cotidiano banal em inusitado – 07/11/2025 – Ilustrada

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Sophie Calle fez questão de que a entrevista fosse presencial. “Diante de um computador, é um pouco desencarnado, não falo da mesma maneira.” Ainda bem, porque a visita do repórter da Folha à casa-ateliê em Malakoff, no sul de Paris, ajuda a entender a ousadia da artista.

A sala, por exemplo, é dominada por uma girafa empalhada, batizada Monique, nome da mãe de Calle. Isso é contado nas páginas 108 e 109 do livro “Histórias Reais” e ilustra bem o que o leitor vai encontrar na obra, que sai agora no Brasil pela Relicário —microcontos de uma página, acompanhados por uma foto e sempre surpreendentes.

Lançado na França em 1994, o livro já foi reeditado e ampliado oito vezes. “Cada vez que fazemos uma, acrescentamos as histórias que escrevi durante o ano.”

É um dos maiores sucessos da francesa de 71 anos. “É só uma questão de reconhecer o extraordinário na vida cotidiana. Coisas acontecem comigo porque eu as procuro. Então eu adquiri o hábito, quando vivo, de ver o que pode ser contado.”

Eis um exemplo, do conto “O Salto Agulha”: “Eu tinha 27 anos. Fora contratada para fazer striptease numa tenda montada para a feirinha de Natal na esquina do boulevard de Clichy com a rue des Martyrs. Eu precisava me despir 18 vezes por dia entre quatro da tarde e uma da manhã.”

Em “O Divórcio”, ela segura o pênis de um homem que urina. Em “Moïse”, um touro lambe diariamente os seios da autora. Tudo isso é devidamente ilustrado com fotos. Mas não é um livro sobre perversões: há contos singelos, tristes, patéticos, em que o leitor muitas vezes se reconhece.

Na dedicatória que autografou no exemplar da reportagem, Calle escreveu apenas “vraiment” (“verdadeiramente”) entre “histórias” e “reais”. As pessoas perguntam se as histórias do livro são reais? “O tempo todo. Não inventei nada. Mas, ao mesmo tempo, nada é verdade. Tudo aconteceu, mas aquela frase foi dita exatamente assim? Isso eu não sei.”

Artista difícil de classificar —escritora, fotógrafa, artista plástica—, Calle conquistou renome na França por misturar a própria vida com a arte. Na pesquisa para suas obras, já pediu a estranhos para dormirem em sua cama e espreitou desconhecidos pelas ruas.

Os 66 relatos curtos do livro escondem, segundo ela, um longo trabalho de edição. “Meus pequenos textos parecem concisos, mas no início são muito longos. Então eu corto, corto, corto, até a sensação de que, se eu tirar mais palavras, vou perder a história.”

Um dos temas recorrentes é a morte: da mãe, do pai, do gato. “A morte sempre esteve próxima”, explica. “Quando era pequena, atravessava quatro vezes por dia o cemitério de Montparnasse, no caminho da escola. Não vivo com medo, mas, ao mesmo tempo, sim, devo ter muito medo para falar tanto sobre isso.”

Embora seus contos se destinem também aos homens, Calle reconhece que seu público é majoritariamente feminino, e, para sua alegria, jovem.

“Se dou uma palestra ou faço uma exposição, há muito mais mulheres. Uma vez um jornalista escreveu: se você for um homem solteiro de 30 anos à procura de namorada, vá à exposição de Sophie Calle: as moças estão todas lá.”

A autora lamenta que a condição feminina não tenha progredido muito em relação à época em que sofreu episódios de assédio masculino narrados no livro. “Mesmo aos 71 anos, não conheço nenhuma menina que não volte para a casa à noite olhando para a esquerda e para a direita e correndo um pouco no final. As mulheres vivem com isso.”

Calle conta que durante muito tempo, “quando tinha energia para ser militante”, foi feminista. “Fazia abortos no meu apartamento, quando isso era proibido [o aborto foi legalizado na França em 1975]. Depois comecei a me interessar menos. Isso [o feminismo] certamente transpareceu nos textos, mas não faço mais parte de grupos.”

A girafa não é o único animal empalhado na casa da autora. Há um lobo e outros bichos. Todos eles, assim como os incontáveis objetos do ateliê, evocam uma memória. Em uma das paredes, por exemplo, ela emoldurou um Google que deu no próprio nome. O resultado da pesquisa: “Sophie Calle é uma artista francesa sem filhos por opção.”

Em 2023, a trajetória dela foi homenageada com uma exposição no Museu Picasso, em Paris. Ela teve carta branca para montar as salas do museu do jeito dela, dialogando com a obra do catalão. Pegou todos os objetos que tinha e expôs a própria casa. “De repente, minha vida cotidiana, que antes era apenas privada, tinha uma existência pública.”

Na casa, sobraram só as gavetas com seus projetos inacabados. Ela teve, então, uma ideia: uma última sala na mostra com esses projetos, que também serão tema de um livro.

“É uma maneira de concluir o inacabado, talvez porque os projetos não fossem bons, talvez porque eu nunca teria tempo, devido à minha idade, Quis me despedir deles dando-lhes uma existência.”



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