Kleber Mendonça Filho é uma figura midiática. Para o bem e para o mal, sua projeção internacional causa alguns curtos-circuitos na recepção de cada novo filme que realiza.
É o caso de “O Agente Secreto“, que estreia agora no Brasil após um lançamento bem-sucedid em Cannes, da passagem por diversos festivais e de ter sido o escolhido para disputar uma indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro.
Nas redes sociais, o longa já despertou amor e ódio. Há os que amaram antes de vê-lo e os que detestaram antes de vê-lo. Os de um lado não entendem como pode haver gente do outro lado. E assim se faz a cinefilia de hoje, de disputas de torcidas. Talvez seja o nível mais baixo da cinefilia em todos os tempos, o que atinge, obviamente, a renovação da crítica.
Talvez o pior efeito dessa decadência seja a blindagem feita pelo fã-clube do diretor. Recentemente, numa rede social onde as discussões tendem a ser ralas, correu o boato de que sudestinos não gostaram do filme por serem… sudestinos. Teriam estranhado o sotaque e a prosódia pernambucanos.
Os membros do fã-clube se esquecem da recepção imensamente positiva que o cinema pernambucano teve pela crítica do sudeste, sobretudo de São Paulo. O crítico desta Folha, Inácio Araujo, é um dos maiores entusiastas de diretores como Kleber Mendonça Filho, Gabriel Mascaro, Marcelo Gomes e outros, apontando constantemente o frescor inventivo do cinema pernambucano. Inácio está longe de ser figura minoritária nessa defesa.
A esta altura, muitos já viram o filme. Pré-estreias pipocam em várias praças. Festivais fazem alarde de sua exibição. Podemos pensar no que o filme tem de bom, e no que tem de problemático. Podemos pôr “O Agente Secreto” em crise. Afinal, eis a principal função da crítica.
A primeira coisa que se nota é que o cineasta sabe lidar bem com suas referências, de Robert Altman a Brian De Palma, de Jean-Pierre Melville a Fernando Di Leo. Se o filme soa derivativo em alguns momentos, é o preço a pagar por essa habilidade na cópia de estilos diversos.
Estamos em 1977. Wagner Moura é Armando, um professor universitário que desenvolve, em Brasília, uma pesquisa envolvendo novas tecnologias. Surge um figurão com ódio de cientistas e eles se atritam. Armando muda de nome, vira Marcelo, mas volta a sua Recife natal, com a ilusão de que o passado não o perseguiria.
O figurão, contudo, já contratou matadores profissionais para dar cabo de Armando/Marcelo, que a esta altura está sendo protegido por uma rede de auxílio a foragidos do regime militar.
Temos então um thriller atmosférico, com alguma ação, cujo título disfarça seu verdadeiro teor de investigação sobre os efeitos da ditadura no meio científico brasileiro.
O elenco é o ponto forte. Wagner Moura está bem, como quase sempre. Hermila Guedes tem um papel pequeno, mas consegue se destacar como a amante pernambucana de Marcelo. Mas o destaque óbvio vai para os bandidos, os homens que usam farda para executar e roubar impunemente.
E entre os destaques, sobressai-se o ótimo Robério Diógenes, como o delegado inescrupuloso e corrupto, embora seja necessário dizer que Gabriel Leone está ótimo como ajudante de matador.
O grande problema de “O Agente Secreto” é que parece filme de estreante, cheio de ideias conflitantes, digressões que fazem o filme perder boa parte de uma possível coesão.
Um exemplo de digressão é o pequeno episódio da perna cabeluda, uma homenagem ao cinema trash que poderia funcionar bem, mas por algumas opções —talvez até pelo momento em que surge no filme– prejudica a manutenção da atmosfera nervosa, que até então estava bem estabelecida.
Nada supera, contudo, a decepção que se pode ter com os dez minutos finais, cujo teor anticlimático o filme já antecipava em algumas cenas tolas com moças ouvindo as gravações arquivadas. Talvez o julgamento do filme dependa mais da aceitação desse final do que de qualquer outro artifício criado pelo diretor.
É possível entender que Mendonça Filho quisesse falar de ontem como hoje, de um sentimento de que tudo retorna e da constante sombra da extrema direita em nosso horizonte. Por isso parece proposital o corte seco na tensão para provocar um distanciamento crítico no espectador.
Se o assassinato do personagem é representado de modo interessante, que dispensa a encenação do ato, tudo o que vem a seguir enfraquece o filme. Até mesmo a interpretação de Wagner Moura sofre com isso, por estar na pele de outro personagem, o filho de Antonio.
“O Agente Secreto” é um bom filme, bem filmado e bem levado na narrativa. É de lamentar que prefira perder-se no excesso de ideias a procurar uma depuração que valorizasse seus melhores momentos.