Cynthia McLeod escreve memória amarga do Suriname colonial - 04/11/2025 - Ilustrada

Cynthia McLeod escreve memória amarga do Suriname colonial – 04/11/2025 – Ilustrada

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O Brasil e o Suriname compartilham uma história marcada pelo colonialismo, pela escravidão e pelas migrações forçadas, cenário revisitado por Cynthia McLeod em “Quão Caro Foi o Açúcar?”.

Na obra, McLeod se dedica à tarefa de recuperar as memórias da escravidão, narrando como o luxo e o conforto das famílias brancas foram erguidos à custa do sofrimento das pessoas escravizadas no Suriname colonial.

Publicado originalmente em 1987 e agora lançado em português pela editora Pinard, o romance consagrou-a como a principal voz literária do Suriname.

Ambientado no século 18, o livro revisita o período das plantações de cana sob domínio holandês, entrelaçando história e ficção ao resgatar possibilidades de existência que se tentou apagar ao reduzir as vidas negras à sujeição.

Entre o doce do açúcar e o amargo da herança colonial, articulam-se memórias de dor e resistência —o preço do sofrimento inscrito nas dobras da história. A narrativa conduz o leitor entre o factual e o literário, reescrevendo o arquivo histórico e deslocando vozes do silenciamento.

Com uma voz narrativa atenta, o enredo gira em torno de duas jovens da classe dominante: Sarith, judia, ambiciosa e abusiva, e Elza, sua meia-irmã, sensível e crítica aos abusos. Em paralelo, capítulos sobre pessoas escravizadas —como Maisa, Mini-Mini e Alex— subvertem a perspectiva de narrar apenas a sujeição, evidenciando autoconsciência e formas sutis de resistência.

Por meio de personagens entrecortadas por diálogos reveladores e notas tradutórias que ampliam a densidade da trama, o romance aborda relações de poder entre holandeses, judeus e pessoas escravizadas, atravessadas por amores proibidos, violências e dilemas morais.

Conferindo humanidade às vidas negras, McLeod ressalta o afeto e a inventividade diante das opressões. Sua escrita expõe as dinâmicas entre colonialismo, raça e gênero, que oprimiam especialmente as mulheres escravizadas.

Convém observar que “Quão Caro Foi o Açúcar?” ainda preserva o uso das palavras “escravo” e “escrava”, recordando de forma explícita a condição a que foram submetidas as pessoas negras nas “plantations” do Suriname.

Por outro lado, também revela a consciência dessas pessoas sobre o horror e o custo da riqueza colonial: “tudo obtido com a escravidão… quão caro tudo isso era, o preço pago pelo café e pelo açúcar”, resultando em “túmulos de centenas de escravos sem nome”.

Mesmo diante da desumanização, McLeod recorre à fabulação como gesto capaz de dar dimensão estética e política à literatura produzida por mulheres caribenhas e latino-americanas, “desarticulando” o historicismo e conduzindo o passado-presente à reimaginação crítica.

Em “Quão Caro Foi o Açúcar?” , o leitor é confrontado com o açúcar como commodity da tortura, símbolo de prosperidade sustentada pelo sangue negro, e com a hipocrisia moral da elite colonial. Sua tradução é indispensável ao ampliar o alcance da literatura surinamesa e o diálogo com outros países e autoras da América do Sul.

Organizado em capítulos curtos, o romance captura os silêncios dos arquivos, preenchendo-os com a resistência negra dos “marrons”, “Alukus” e “Bonis”. Reafirma que, mesmo sob a opressão, os escravizados construíram projetos de liberdade e alerta que uma nação sem memória repete os erros do passado.

É um desejo de liberdade que desestabilizava o sistema —”os mais de 800 militares, com todas as suas armas, não conseguiam enfrentar os cerca de 300 Alukus”.

Ler esse livro é revisitar vestígios do passado para reconhecer que o doce sabor do açúcar foi amargo para milhões de vidas negras, com marca das mutilações, sonhos amputados, violação de corpos, mas, ao mesmo tempo, luta por dignidade.

A obra reafirma a literatura como espaço da memória “afrodiaspórica”, fazendo ecoar as vozes daqueles que não puderam praticar o “Winti Dansi”, amar seus amores, “maternar” filhos e viver livres. Como adverte Christina Sharpe, “a escravização transatlântica foi e é o desastre”, e seu resquício amargo ainda persiste.

“Quão Caro Foi o Açúcar?” convoca o tempo da reescrita na compreensão das feridas históricas que nos constituem na diáspora.



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