Meses antes de cair no chão em agonia enquanto fazia compras com seu filho pequeno, Wang Peizhi passava noites em claro preparando freneticamente a loja principal da Xiaomi para o lançamento de seu primeiro veículo elétrico, em 2024.
O volume de trabalho de Wang aumentou depois que a empresa, liderada pelo bilionário Lei Jun, anunciou um plano ousado para se tornar a primeira companhia de tecnologia a fazer com sucesso a transição para a fabricação de automóveis —uma façanha que nem a Apple conseguiu alcançar. Lei, 55, apostou sua reputação na mudança, prometendo que esse seria seu “último projeto empreendedor”.
Um elemento essencial dessa visão era a rede de varejo da Xiaomi —responsabilidade de Wang. Para competir com empresas como a BYD e a Tesla no crescente mercado chinês de carros elétricos, a companhia decidiu reformar suas lojas, convertendo espaços feitos para celulares em showrooms para sedãs e SUVs.
Mas, durante a pandemia de Covid, a Xiaomi demitiu cerca de metade da equipe encarregada dessa tarefa, deixando em torno de dez pessoas, segundo um ex-funcionário e um atual empregado que trabalharam com Wang.
A pequena equipe viu sua carga de trabalho disparar no início de 2024, quando a empresa correu para abrir lojas de veículos elétricos a tempo do lançamento do sedã SU7, disseram as fontes.
Wang passou a trabalhar cada vez mais horas, assumindo os maiores projetos do grupo, além de suas funções rotineiras de manutenção das lojas. Por estar sediado em Pequim, na matriz da Xiaomi, ficava mais exposto à alta administração.
Nos primeiros oito meses do ano, trabalhou em pelo menos 267 lojas, muitas vezes adaptando espaços para veículos, segundo documentos e mensagens internos vistos pela Bloomberg News. Em 25 de agosto, menos de três dias depois de desabar diante do filho, ele morreu de ataque cardíaco, aos 34 anos.
As autoridades locais concluíram que a morte de Wang não estava relacionada ao trabalho. Mas sua viúva está convencida de que a rotina exaustiva contribuiu para isso.
“Ele foi tratado como uma folha: quando cai, as pessoas pisam sem notar sua existência”, disse Luna Liu à Bloomberg News.
Ela concordou em falar publicamente pela primeira vez desde a morte do marido porque acredita que o caso merece mais atenção. Também compartilhou milhares de mensagens de trabalho trocadas por Wang no WeChat, preocupada com a pressão que as empresas chinesas impõem sobre seus funcionários, com pouca atenção à saúde e ao bem-estar deles.
Wang recebeu mais responsabilidades ao longo dos anos por ser extremamente dedicado. Supervisionava alguns dos projetos mais importantes da Xiaomi, incluindo o showroom principal perto da Praça da Paz Celestial —e ainda assim tinha dezenas de outros sob sua gestão.
Seu impulso para trabalhar tanto era complexo. Pessoas próximas disseram que ele sentia forte senso de obrigação e assumia tarefas sozinho porque não havia quem o ajudasse. Também era perfeccionista, controlando centenas de projetos e se esforçando ao máximo para cumprir as demandas da empresa.
Ele era bem pago para os padrões chineses, recebendo cerca de 600 mil yuans por ano (R$ 448 mil, incluindo ações), mas, segundo Liu, vivia sob “enorme pressão mental”, preso entre as exigências da liderança e as dificuldades cotidianas. “Ele ficava espremido entre os chefes e as lojas sempre que surgia um problema”, disse ela.
Em resposta a um pedido detalhado de comentário, um porta-voz da Xiaomi afirmou: “Estamos profundamente entristecidos pelo falecimento de nosso colega e expressamos nossas sinceras condolências à família e aos amigos. Ao mesmo tempo, fazemos o possível para oferecer apoio e assistência à família, dentro das leis e regulamentos aplicáveis.”
Wang não foi um caso isolado. Funcionários em toda a indústria de tecnologia chinesa relatam longas jornadas. A Organização Mundial da Saúde define o excesso de trabalho como mais de 55 horas por semana —algo comum em muitas grandes empresas do país.
O caso de Wang oferece um raro retrato da enorme pressão dentro do setor de tecnologia na China, impulsionada pela feroz competição em mercados como veículos elétricos, comércio eletrônico e inteligência artificial.
A cultura de trabalho excessivo, conhecida como “996” —das 9h às 21h, seis dias por semana—, está profundamente enraizada no setor.
Segundo Mary Gallagher, professora da Universidade de Notre Dame, antes era motivada pela crença de que o esforço traria recompensas durante o rápido crescimento econômico. Hoje, é alimentada por prioridades nacionais e um senso de dever patriótico, à medida que a China disputa espaço em chips, IA e veículos elétricos.
“Essas indústrias estão indo muito bem —inclusive nos mercados de exportação— e são cruciais para a confiança que Xi Jinping quer ver na economia”, disse Gallagher. “Há uma pressão enorme nesses lugares.”
Desde o lançamento do SU7 em março, as ações da Xiaomi subiram cerca de 200% em Hong Kong. Ainda assim, a empresa está longe de alcançar o grupo de elite das montadoras. Sua meta é entregar 350 mil veículos em 2025, acima da projeção anterior de 300 mil.
A título de comparação, a líder chinesa BYD vendeu cerca de 4,3 milhões de elétricos e híbridos no ano passado, e a Tesla, 1,8 milhão no mundo.
Nos últimos anos, a China vem debatendo a necessidade de melhorar o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal. As redes sociais se encheram de relatos sobre jornadas exaustivas, especialmente após mortes de trabalhadores atribuídas ao excesso de trabalho. O governo prometeu reforçar a fiscalização e proteger os direitos dos empregados.
Mesmo assim, casos continuam a surgir. Em 2021, uma funcionária da PDD Holdings morreu após desmaiar voltando do trabalho, provocando revolta online. No ano seguinte, um moderador de conteúdo da Bilibili morreu de AVC (acidente vascular cerebral). As empresas negaram irregularidades.
Embora a lei limite a jornada a 44 horas semanais, estatísticas oficiais mostram que a média atingiu 49 horas em 2023 —contra 43 horas nos EUA.
Reportagens recentes indicam que a Xiaomi exigia jornadas de pelo menos 11,5 horas diárias e que funcionários que trabalhassem menos de oito horas precisavam justificar.
Um levantamento da plataforma Maimai confirmou: a Xiaomi está entre as empresas com as jornadas mais longas da tecnologia chinesa.
Nas semanas anteriores à sua morte, Wang trabalhou em pelo menos 80 lojas, segundo mensagens de WeChat, cruzando várias províncias do norte da China. Em 22 de agosto, sentindo-se fraco, foi ao hospital, mas continuou respondendo a mensagens de colegas. Às 16h, ainda trocava informações de trabalho.
A Xiaomi negou responsabilidade. Ofereceu à família 50 mil yuans (cerca de R$ 37 mil) como ajuda, mas o valor nunca foi pago, segundo Liu. Ela recebeu o seguro de vida da empresa, de 800 mil yuans, mas ficou com dívidas de cerca de 4 milhões de yuans (R$ 3 milhões).
Dias depois, escreveu em sua conta no Weibo: “Espero que o senhor Lei veja a morte repentina do funcionário Wang Peizhi. Meu marido contribuiu para o sucesso dos carros elétricos da Xiaomi. Morreu de tanto trabalhar.”
As postagens tiveram pouca repercussão e foram criticadas por supostamente buscar compensação. Dentro da empresa, a morte foi pouco comentada. Nenhuma mudança na carga de trabalho foi feita.
“Ele quase nunca chegava antes das 21h. Quase sempre nosso filho já estava dormindo”, disse Liu. “O trabalho tomou todo o tempo em que ele era necessário como pai e marido.”
Uma das últimas mensagens que Wang enviou foi um apelo desesperado a um fornecedor: “O que assumi foi um compromisso de vida ou morte. Não me deixe na mão.”