Um par de tênis surrados, sujos da terra que atesta uma história de chão percorrido. Neles também se estampa o desprendimento só possível na juventude e, mais especialmente, na juventude que se afirma livre da lógica do mercado, do capitalismo —afinal, empresários respeitáveis e executivos bem-sucedidos não ostentam tênis sujos.
A foto de Cafi ilustrou, em 1972, a capa do primeiro álbum solo de Lô Borges, músico morto na noite deste domingo (2), informalmente batizado de “disco do tênis”. Ela carrega toda uma ética de liberdade, uma fidelidade à dinâmica da vida como estrada, cujo sentido se dá no caminhar. Ideias que alimentaram peregrinos desde a Antiguidade e que, nas décadas anteriores ao disco, serviram de base filosófica para beatniks e hippies.
A imagem —assim como as canções do disco que a espelham— marca os primeiros passos da carreira do compositor mineiro, então um jovem de 20 anos que havia acabado de estrear assinando com Milton Nascimento o histórico “Clube da Esquina”. Mas, até por carregar em sua natureza estática o movimento como potência, a foto é capaz de simbolizar toda sua trajetória, que se estenderia nas décadas seguintes.
Para além da caminhada de Lô, o par de tênis representa também o apelo maior de sua música —uma afirmação da liberdade, de seu compromisso com a dimensão mais ambiciosa da existência. Não há como negar a força disso num mundo medido cada vez mais por métricas que mal tocam a superfície dos sentidos que Lô buscava em sua obra. Como ele costumava dizer, seu objetivo não era sobreviver da música, e sim que a música sobrevivesse nele.
Em vez da horizontalidade massiva do hit, Lô buscou sempre a verticalidade funda do clássico. Com esse pensamento, emplacou canções —ao lado de parceiros como Márcio Borges, Milton Nascimento, Ronaldo Bastos, Samuel Rosa e Fernando Brant— presentes na memória afetiva de gerações.
Seja pelas gravações elevadas de nomes como Nana Caymmi, Tom Jobim, Elis Regina, João Bosco e o próprio Milton, seja pelas cantorias amadoras em rodas de violão Brasil adentro, repletas de jovens de tênis sujos de terra.
As canções do “disco do tênis” e os bastidores da gravação do álbum testemunhavam seu tempo. A busca pela ampliação dos horizontes pelas drogas; letras que refletiam a beleza e a violência do Brasil daquele momento —e que nunca cessam—; e, por fim, acordes e melodias que traduziam e sublimavam esses horizontes amplos, belezas e violências.
Portanto, sobre todo o folclore e mitificação que podia se criar em torno de Lô, se afirmava naquele álbum, e em tudo que veio depois, algo absoluto —sua musicalidade enorme e original. Não à toa, o maestro soberano Tom Jobim se encantou por “Trem Azul” a ponto de regravá-la com uma letra em inglês de sua autoria, a partir da original de Ronaldo Bastos —algo raro em sua discografia dedicada quase integralmente à sua própria obra.
A demora em lançar um segundo disco solo, que chegaria apenas em 1979, e a escassez de gravações nas décadas seguintes se deu devido a duas dimensões —uma interna, outra externa. De um lado, seu próprio compromisso existencial com a estrada, sua inadequação à dinâmica formal de uma carreira, com uma agenda de gravadora, divulgação etc. De outro, à cegueira do mercado para uma obra que se recusava a dialogar com o imediatismo da onda do momento.
Porém, com a virada para o século 21, a música brasileira começou a se mover na direção de Lô, especialmente pelo olhar de artistas jovens. Samuel Rosa e Nando Reis —que já haviam feito “Resposta”, uma canção em grande medida tributária ao estilo de Lô, como reconheceu o próprio Milton, quando a regravou— convocaram o próprio compositor para uma parceria. “Dois Rios” foi gravada pelo Skank em 2003. Samuel e Lô lançariam 13 anos depois um álbum ao vivo juntos.
Lô se aproximou de outros jovens mineiros como Samuel Rosa. Com Makely Ka, nascido no Piauí, mas radicado em Belo Horizonte, escreveu as canções do álbum “Dínamo”, em 2020. Já Pablo Castro encabeçou o projeto de uma turnê de Lô lembrando as canções do “disco do tênis”, acompanhado por uma banda formada por músicos que, como Pablo, tinham idade para ser filhos do compositor. O show rendeu em 2018 o disco “Tênis + Clube – Ao Vivo no Circo Voador”.
Nos últimos sete anos, sua produção foi intensa, com um disco de inéditas por ano. Restabeleceu parcerias com amigos antigos como Nelson Angelo, colega dos tempos de Clube da Esquina, e seu irmão Márcio Borges, com quem estava há bastante tempo sem compor, e inaugurou colaborações com amigos novos, como Zeca Baleiro, com quem fez seu último álbum, “Céu de Giz”, lançado em agosto deste ano.
Em toda essa produção mais recente, Lô seguia fiel à sua musicalidade construída sobre lições dos Beatles e de Tom Jobim —e à prerrogativa anunciada em 1972 naquele par de tênis sujos, plenos de caminhadas passadas e futuras.
É simbólico que “Antes do Fim”, a faixa que abre o recém-lançado “Céu de Giz”, traga em seus primeiros versos a afirmação inequívoca: “Antes que o mundo se acabe/ No fogo de um vulcão/ Eu sigo o rastro do que me diz o coração”.
Não à toa, ele seguiu até o fim da vida fazendo a mesma dedicatória a todos os fãs que chegavam até ele com um “disco do tênis” pedindo um autógrafo —”Com o pé na estrada, Lô Borges”.