'Enterre seus Mortos' tem direção rigorosa como seu trunfo - 31/10/2025 - Ilustrada

‘Enterre seus Mortos’ tem direção rigorosa como seu trunfo – 31/10/2025 – Ilustrada

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A literatura de Ana Paula Maia vem se desenvolvendo desde o começo dos anos 2000 numa série de novelas e romances cheias de personagens em comum. Dona de um estilo objetivo e seco, Maia se notabilizou por histórias de homens caladões e brutos, sem psicologismos e marcados por rotinas excruciantes de trabalho, quase todos ligados à morte.

O universo da escritora parece modelado aos interesses de um cineasta como Marco Dutra, outro nome surgido no cenário cultural brasileiro do início do século 21. Ele dirigiu curtas e longas-metragens de atmosfera insólita e horrífica, vários deles em parceria com Juliana Rojas. “Enterre seus Mortos” é o encontro entre as palavras diretas e duras de Ana Paula Maia e o estilo devaneante de Marco Dutra. Ele assina a adaptação do romance homônimo publicado em 2018 e põe em cena elementos de vários outros livros da autora.

“Enterre seus Mortos” demorou um ano para chegar aos cinemas desde que foi exibido em festivais brasileiros, em 2024. Curiosamente o atraso fez bem ao filme. Seu estranhamento tem mais precisão diante da iminência diária de grandes catástrofes perpetradas pelos seres humanos ou pela natureza e a onipresença de grupos religiosos esquisitos prometendo refúgio e salvação através da fé diante do caos.

No enredo, uma grande tragédia já se abateu sobre a Terra, ou pelo menos sobre o Brasil. Para variar, quem tem dinheiro se ajeitou e quem não tem precisa circular por aí a atravessar postos de vigilância sob risco de ser detido e enviado a colônias similares a campos de concentração. Tudo porque um vírus mortal se espalhou e criou fissuras sociais e econômicas –sim, é uma alegoria da pandemia, especialmente por absorver diversos aspectos da novela “De Cada Quinhentos uma Alma”, que Maia lançou em 2021 sob o impacto da Covid-19.

Ainda que as histórias lúgubres do cinema de Marco Dutra, sobrenaturais ou não, sempre tenham mantido certo tipo de encaminhamento narrativo direto, em “Enterre seus Mortos” as coisas estão diferentes. O filme, de longe o mais ambicioso na carreira do diretor paulista, é difuso e elusivo, por mais que se tenha um protagonista muito claro, o recolhedor de animais mortos Edgar Wilson, na tela vivido por Selton Mello.

O que se vê não é o arco dramático de Edgar, ainda que o enredo marque sua presença ao longo de duas horas e o coloque em situações limítrofes em relação a si e aos outros ao redor, principalmente de Nete, interpretada por Marjorie Estiano.

A errância um tanto zumbificada de Edgar e seu vai e vém entre espaços e pessoas são mais fortes que a personalidade em si. Em “Enterre seus Mortos” vemos e descobrimos as coisas pelo olhar desse homem e somos contaminados tanto por seus desarranjos mentais quanto pelo sistema e funcionamento daquela nova sociedade sobre a qual não se tem familiaridade.

Esse é um dos fascínios e também um dos riscos, alguns dirão fragilidades, de “Enterre seus Mortos”. Ele se entrega com avidez à mecânica de seu mundo, e essa mecânica é um tanto opaca e pouco convidativa. Vai ser difícil a espectadores em busca de conexão e empatia com o protagonista conseguirem se relacionar intimamente com Edgar, mesmo que, em cena, ele seja bem mais psicologizado do que nos livros de Ana Paula Maia.

Mas psicologismos não interessam a Marco Dutra. Seu Edgar Wilson será figura ambígua, por vezes digna de piedade, em outras afeita a monstruosidades, com quem o público se desloca de cena em cena a descortinar o misto de horror e ficção científica que lampejam.

Na direção, “Enterre seus Mortos” é o trabalho mais rigoroso de Dutra: sente-se o olhar do artista decidido a estabelecer uma identidade. Essa ânsia, linda de se ver com tanta vontade de cinema, coloca o filme volta e meia na iminência do desastre, mas ele sempre consegue se erguer. Tal como Edgar, “Enterre seus Mortos” dá jeito de sobreviver antes que o mundo acabe.



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