Como 'Tremembé' explora ficção e realidade de vilões reais - 01/11/2025 - Ilustrada

Como ‘Tremembé’ explora ficção e realidade de vilões reais – 01/11/2025 – Ilustrada

Cultura


Lucas Oradovschi, que interpreta Alexandre Nardoni, caminha sozinho, de um lado para o outro, com fones de ouvido. A cena em questão é um surto de raiva do condenado pela morte da própria filha, Isabella, na marcenaria, dentro do presídio.

Luzes, câmeras e elenco de apoio foram ajustados pela diretora Fabiana Winits. Tudo pronto. Mesmo com isolamento de ruído, era possível ouvir o volume no máximo. Lucas seguia de um lado para o outro, com a música no talo. “Ação”, fones saem e Nardoni entra em cena. Uma maquete cenográfica de madeira em que os detentos trabalhavam é destruída numa tomada com um único soco. Aplausos no set.

“Era heavy metal. É uma esquizofrenia minha playlist de aquecimento. Vai de cantigas de candomblé a Sepultura, Mateus Aleluia, Cartola, Racionais MCs. Sinto que deu um caos e uma tumultuada na minha mente. Combina com minha composição de Nardoni”, diz.

O papel é para a série “Tremembé“, produção nacional que entrou no catálogo do Prime Video. Em cinco episódios, a obra tem o próprio “presídio dos famosos” —apelido do P-II Tremembé, no interior paulista, em meados da década de 2010 — como protagonista a partir de uma dicotomia entre o que é fato e o que é ficção. Para isso, recorre às histórias de criminosos da vida real e como eles se relacionam entre si no ambiente carcerário.

Além de Nardoni, a série traz as relações de Suzane von Richthofen, personagem de Marina Ruy Barbosa, envolta em um triângulo amoroso com Elize Matsunaga, vivida por Carol Garcia, condenada por assassinar o marido, e Sandrão, vivida por Letícia Rodrigues, condenada por sequestro e homicídio de um vizinho de 14 anos.

Aborda a relação amorosa e afetuosa entre os irmãos Daniel Cravinhos, interpretado por Felipe Simas, e Christian Cravinhos, personagem de Kelner Macêdo, condenados pelo assassinato dos pais de Von Richthofen. A produção mostra ainda o cotidiano de outros presos, como Anna Jatobá, papel de Bianca Comparato, condenada pela morte da enteada, e Roger Abdelmassih, vivido por Anselmo Vasconcelos, ex-médico condenado por estupro e violação de quase 40 pacientes.

Ao som de “Perigosa”, de As Frenéticas, o primeiro episódio deixa claro o formato da série, com uma edição veloz e disposta a mostrar os detentos e seus delitos já condenados, dentro da penitenciária. “O primeiro é o da Suzane. Isso foi uma escolha para a pessoa saber o que esse personagem fez para estar ali”, diz Ulisses Campbell, autor dos livros que deram origem ao roteiro.

O trunfo, diz Comparato, é a dimensão histórica que o público ainda pode não saber: “Essa conjuntura de ter essas quatro mulheres e outras de crimes notórios no Brasil no mesmo momento e no mesmo lugar. Amizade, inimizades e casos vão surpreender”.

Ruy Barbosa, em sua primeira incursão fora da Globo como atriz e produtora, acredita traçar um perfil do próprio local, mas com uma dose de entretenimento. “As pistas específicas de personalidade e perfil psicológico dos livros nos deram a fita métrica sobre qual o tom do roteiro. É um trabalho em conjunto, claro, mas não estávamos lá para saber exatamente quais palavras exatas foram ditas. É uma mistura”, diz a intérprete de Von Richthofen.

“É extremamente estrategista. Ela é muito focada naquilo que ela deseja e tem um poder de persuasão muito grande. Sabe o que quer e vai atrás. Acaba até influenciando a vida do Daniel, e se metendo numa relação já existente.”

Para Rodrigues, a distinção de realidade e ficção é por conta do público: “Muitas pessoas vão se interessar pelo produto audiovisual, mas temos livros, reportagens, entrevistas. Eles vão querer investigar mais”.

Garcia, que faz uma personagem já bastante explorada em documentário que dividiu a opinião pública para a Netflix, é mais cética. “O que a gente faz é contar uma história com todas as camadas de dramaturgia que a gente descobriu com roteiro, ensaios, presídio recriado. Quando a gente se vê naquele ambiente, a gente vê que a cena tem outro tom. É sempre uma ficção.”

A série não apresenta a vida pregressa a Tremembé, nem questiona se o crime foi de fato consumado ou não, como alguns produtos true crime se propõem a discutir. “O debate é mostrar o que essas pessoas fazem juntas no mesmo presídio, dormindo em um monte de beliches. É esse convívio recheado de mentiras, intrigas e jogo de poder que interessa. Eles não são tratados como inocentes e nem como pessoas confiáveis. Agora, humanos, sim”, diz Vera Egito, diretora da série.

“As pessoas cometeram crimes, foram condenadas, estão lá pagando pela pena, mas elas estão vivendo, comendo, namorando e trabalhando. Isso é humano”, afirma Ulisses, que traz o conceito de “sexualidade fluída” em ambientes enclausurados, como elucida em sua literatura, também para a série ao retratar o romance documentado por cartas de Christian Cravinhos com outro detento, Luka. “Esses romances acontecem. Tem romances queer, tem romances héteros. Isso é uma das camadas”, conta Daniel Lieff, diretor.

A humanização dos condenados se traduz em sutilezas da fotografia que são prazerosas de observar, com planos refletidos em espelhos quebrados, em tampos de mesas com vidro, em reflexos dos rostos em filetes de água. “A ideia foi filmar [os personagens] sempre através de algo. Quem é ele de verdade? Ele se acha um criminoso? São três coisas: o que você é, o que enxergam de você e o que você enxerga”, diz Guta Carvalho, diretora de arte do projeto.

A plataforma não divulgou o orçamento da obra, gestada por mais de dois anos, como revela Egito, mas os números dão pistas: 1.500 pessoas envolvidas diretamente na série; 660 profissionais na produção; 109 atores e atrizes, no elenco; 772 figurantes, sendo 60 egressos do sistema carcerário.

Assim como a concorrente Netflix, que lançou nova empreitada com “Os Donos do Jogo” sobre a máfia do jogo do bicho, a produção do Prime Video estreará todos os episódios no catálogo em 240 países de uma única vez. “O foco não são os crimes e as histórias conhecidas. É o dia a dia e relações na prisão”, afirma Julia Priolli, head da Amazon MGM Studios no Brasil.

A série pesa a mão em uma direção de arte super-realista e minuciosa, que faz com que o telespectador mergulhe com os atores no mundo prisional. O P-II Tremembé foi recriado em uma fábrica desativada da marca nacional de lingerie Darling em Jaçanã, zona norte da capital, que hoje só funciona como depósito do próprio e-commerce.

Os três andares e o subsolo do prédio foram transformados em alas masculina e feminina, barbearia, sala de visita íntima, solitária, pátio, refeitório, além de ambientes para produção e técnica. Madeira e canos de PVC foram matéria-prima para a construção de 140 leitos em formato de beliche e grades.

“A locação possibilitou nosso trabalho. A gente construiu os ambientes do zero, mas o piso já era bom, as entradas de luz excelentes. E a gente pode criar”, conta Guta, que comandou essa equipe de 45 pessoas. “É muito chocante como a arquitetura fabril se conecta com a arquitetura de presídio”, diz Vera.

“Esse prédio é labirintoso. É quase uma roupa de guerra. Quando a gente entra, já se sente preparado”, afirma Simas. “Começamos achando que tínhamos que nos conhecer [previamente], mas a locação nos mostrou que se tratava dessa convivência específica para essa obra ficcional. A gente não precisou se esforçar tanto para imaginar porque já estava tudo ali”, diz Letícia.

As referências visuais vieram, diz Carvalho, de outros presídios e de artistas do concretismo, movimento artístico de 1970, como a pintora e pioneira, Judith Lauand, morta aos 100 anos em 2022, pela “preocupação com a forma e repetição”. “Quem entra ali, vira qualquer um. Você tem uma padronização nas roupas, nas camas. Todo mundo tem que estar igual.”

A série, além de ser atual por abordar “vilões” sobre quem todo mundo tem uma visão e um julgamento, foi filmada em escala de trabalho 5×2, no segundo semestre do ano passado —exatamente quando a agenda pública foi tomada da PEC pelo fim da escala 6×1, proposta pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP).

“Tem um fantasma da mudança que vai piorar tudo, mas acho que deixa a gente mais eficiente. Trabalha intenso e melhor, e descansa bem. Chega mais renovado”, afirma Comparato sobre o setor do audiovisual. “Já está comprovado que a eficiência desse sistema. Torcendo para ver os bons resultados.”

A obra chega na esteira de uma Odete Roitman, vivida por Débora Bloch, com bastante apelo popular e que terminou viva na nova versão de “Vale Tudo“. Von Richthofen, sem dúvida, é uma “vilã da vida real” que desperta sentimentos desde que seu nome ganhou o noticiário, em 2002. “Como isso vai ser recebido? Não sei, mas nossa intenção nunca foi glamourizar esses personagens”, diz Ruy Barbosa.



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